A NOITE DOS MORTEIROS
Viviam-se os últimos
meses do já longínquo ano de 1973. Ancuabe, uma povoação de Cabo
Delgado, no Norte de Moçambique, era uma zona onde a guerrilha
independentista vinha fazendo um esforço intensivo no seu programado
avanço para Sul, recorrendo, quer à conquista para a causa, das
populações dos muitos aldeamentos implantados na região, quer a
acções de força, de afirmação, violentas.
Ali, para lá das milícias, ou guardas-rurais, que a guarneciam, estava sediada uma
força militar, comandada por um capitão graduado, que, mais do que
operações no mato, numa fase em que já era notório um calar das
armas, por força dos ventos que iam soprando, gastava os dias em
caçadas pelas imediações e no despejo das Laurentinas pelas
cantinas do povoado.
Era ali que os meus pais viviam e faziam pela vida, desde há muito tempo. O meu pai, depois da SAGAL, funcionário do IAM e a minha mãe, após uns anos de professorado, no comércio. Eu, que, desde 1967, integrado no Quadro Administrativo, passara por Namuno, Balama, Metooro e Muaguide, e no próprio Ancuabe, com cerca de 72 meses de permeio, a cumprir o serviço militar, ia vivendo nas casas que o Estado destinava aos seus funcionários, em Outubro de 1973, por ter abandonado o serviço público (por aziaga opção), passei a viver numa pequena moradia (na imagem, em foto recente), numa das duas que os meus pais haviam comprado à SAGAL, enquanto com eles me aventurava numa campanha de algodão, para o que desbravámos, com recurso a maquinaria, algumas centenas de hectares de mato, que a terra era virgem e fértil.
Mesmo não se abordando muito o assunto, era consensual, no íntimo dos residentes, que a situação na zona deixava antever, a qualquer momento, uma demonstração de força por parte da Frelimo, com um ataque à povoação.
Numa noite de data que nunca fixei, mas que não estaria distante do Natal daquele ano, cerca das três da madrugada, acordei em sobressalto, com o “ribombar” de morteiradas que a minha experiência militar apontava para granadas de 81 ou 82. Iam caindo e ecoando no morro sobranceiro, com alguma regularidade, quando me dispus a sair para fora de casa armado com uma .300, a arma com que, de quando em vez, ia em busca de alguma carne para a geleira.
Comigo, levei a esposa e a filha de pouco mais de um ano.
A casa situava-se a uns 100 metros do núcleo habitacional de Ancuabe, na saída para a Mesa. Estava ladeada por um pequeno terreno de girassol e um campo de milho mais vasto, este último propriedade dos residentes num núcleo de palhotas do aldeamento contíguo.
Foi, para o vasto milheiral que entendi levar os familiares, onde lhes recomendei para se sentarem e se manterem em silêncio.
Entretanto, fui-me abeirando, só, da orla, junto à picada, de onde teria mais campo de observação para a parte central de Ancuabe, onde os meus pais pernoitavam, a uns 100 metros, no intuito de ter mais percepção do que se estava a passar, já que, para lá dos rebentamentos, não se ouviam tiros de armas ligeiras.
Foi quando vi um vulto à porta de minha casa, chamando. Aproximei-me e reconheci o meu cozinheiro, o Amisse, que residindo numa palhota nas imediações do Quartel, me informou, mais espavorido do que eu, que não havia ataque algum por parte dos guerrilheiros, mas que era, sim, a tropa quem estava a “despachar” morteirada para o morro....e whisky e cerveja para o próprio bojo.
Voltei, então, a entrar no milheiral, onde havia deixado os familiares, que pensava ir encontrar sós, e espantei-me. Para lá da esposa e da filha, estariam por entre o milho, junto a elas, umas largas dezenas de mulheres e crianças, que teriam vindo do aldeamento próximo. Não lhes ouvi um suspiro, um ai, um ruído de passos na aproximação.
Tal silêncio, ainda hoje é objecto de admiração, quando se evocam aqueles momentos. Como o é o facto de terem por reacção instintiva escolhido como porto de abrigo seguro o local junto à minha residência e intuido o ponto exacto onde havia “escondido” os meus familiares.
Disse-me, depois, a esposa, que aquelas mulheres iam lá casa com frequência, trocar farelo de milho (para os galináceos) por sal e que, também, ofereciam mangas.
Quando amanheceu e, com outros residentes, nos dirigimos ao quartel militar, pedindo explicações, ficámos a saber o que, em parte, já palpitávamos. O capitão e os dois alferes da guarnição, que haviam recebido o reforço de mais um alferes checa, no dia anterior, depois de o exercitarem, e se exercitarem, nos exercícios do Baco e das suas etílicas proezas, haviam, noite alta, “praxarem-no” com um virtual ataque dos guerrilheiros.
Mas, se este acto pouco edificante por parte dos militares foi perdoado e depressa esquecido, o que me não sai da lembrança, é a forma como aquelas mulheres, com as suas crianças, se comportaram, reagindo ao medo, com um silêncio sepulcral, bem juntos da minha Família, sua vizinha!
Era ali que os meus pais viviam e faziam pela vida, desde há muito tempo. O meu pai, depois da SAGAL, funcionário do IAM e a minha mãe, após uns anos de professorado, no comércio. Eu, que, desde 1967, integrado no Quadro Administrativo, passara por Namuno, Balama, Metooro e Muaguide, e no próprio Ancuabe, com cerca de 72 meses de permeio, a cumprir o serviço militar, ia vivendo nas casas que o Estado destinava aos seus funcionários, em Outubro de 1973, por ter abandonado o serviço público (por aziaga opção), passei a viver numa pequena moradia (na imagem, em foto recente), numa das duas que os meus pais haviam comprado à SAGAL, enquanto com eles me aventurava numa campanha de algodão, para o que desbravámos, com recurso a maquinaria, algumas centenas de hectares de mato, que a terra era virgem e fértil.
Mesmo não se abordando muito o assunto, era consensual, no íntimo dos residentes, que a situação na zona deixava antever, a qualquer momento, uma demonstração de força por parte da Frelimo, com um ataque à povoação.
Numa noite de data que nunca fixei, mas que não estaria distante do Natal daquele ano, cerca das três da madrugada, acordei em sobressalto, com o “ribombar” de morteiradas que a minha experiência militar apontava para granadas de 81 ou 82. Iam caindo e ecoando no morro sobranceiro, com alguma regularidade, quando me dispus a sair para fora de casa armado com uma .300, a arma com que, de quando em vez, ia em busca de alguma carne para a geleira.
Comigo, levei a esposa e a filha de pouco mais de um ano.
A casa situava-se a uns 100 metros do núcleo habitacional de Ancuabe, na saída para a Mesa. Estava ladeada por um pequeno terreno de girassol e um campo de milho mais vasto, este último propriedade dos residentes num núcleo de palhotas do aldeamento contíguo.
Foi, para o vasto milheiral que entendi levar os familiares, onde lhes recomendei para se sentarem e se manterem em silêncio.
Entretanto, fui-me abeirando, só, da orla, junto à picada, de onde teria mais campo de observação para a parte central de Ancuabe, onde os meus pais pernoitavam, a uns 100 metros, no intuito de ter mais percepção do que se estava a passar, já que, para lá dos rebentamentos, não se ouviam tiros de armas ligeiras.
Foi quando vi um vulto à porta de minha casa, chamando. Aproximei-me e reconheci o meu cozinheiro, o Amisse, que residindo numa palhota nas imediações do Quartel, me informou, mais espavorido do que eu, que não havia ataque algum por parte dos guerrilheiros, mas que era, sim, a tropa quem estava a “despachar” morteirada para o morro....e whisky e cerveja para o próprio bojo.
Voltei, então, a entrar no milheiral, onde havia deixado os familiares, que pensava ir encontrar sós, e espantei-me. Para lá da esposa e da filha, estariam por entre o milho, junto a elas, umas largas dezenas de mulheres e crianças, que teriam vindo do aldeamento próximo. Não lhes ouvi um suspiro, um ai, um ruído de passos na aproximação.
Tal silêncio, ainda hoje é objecto de admiração, quando se evocam aqueles momentos. Como o é o facto de terem por reacção instintiva escolhido como porto de abrigo seguro o local junto à minha residência e intuido o ponto exacto onde havia “escondido” os meus familiares.
Disse-me, depois, a esposa, que aquelas mulheres iam lá casa com frequência, trocar farelo de milho (para os galináceos) por sal e que, também, ofereciam mangas.
Quando amanheceu e, com outros residentes, nos dirigimos ao quartel militar, pedindo explicações, ficámos a saber o que, em parte, já palpitávamos. O capitão e os dois alferes da guarnição, que haviam recebido o reforço de mais um alferes checa, no dia anterior, depois de o exercitarem, e se exercitarem, nos exercícios do Baco e das suas etílicas proezas, haviam, noite alta, “praxarem-no” com um virtual ataque dos guerrilheiros.
Mas, se este acto pouco edificante por parte dos militares foi perdoado e depressa esquecido, o que me não sai da lembrança, é a forma como aquelas mulheres, com as suas crianças, se comportaram, reagindo ao medo, com um silêncio sepulcral, bem juntos da minha Família, sua vizinha!
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